AZUL – Um ensaio sobre a depressão

ATENÇÃO: O conteúdo deste texto poderá gerar desconforto em algumas pessoas. Trata-se de tema e conteúdo sensíveis, com gatilhos, linguagem imprópria e tema polêmico. Por favor, não prossiga na leitura caso não se sinta confortável com o tema depressão. A qualquer momento que sinta necessidade ou caso se identifique com os sentimentos expressos no texto, busque ajuda psicológica e/ou familiar.

Texto sem revisão.

Eu já a conhecia.
Talvez fosse por isso que não notei quando ela se apoiou nos meus ombros, quando sentou no meu colo, ou quando envolveu o meu peito.
Demorou para notá-la, mas quando o fiz, foi tarde demais.

Não tinha muito o que fazer, não precisava na verdade, tudo estava acabado, nada seria como antes, mas eu não tinha outra opção.
— Mergulhe, Ava, só respire fundo, prenda a merda da respiração e mergulhe. — falei para mim antes de tomar o fôlego e entrar naquela água fria.
Um. Me coloquei em posição.
Dois. Puxei o ar, inflando os pulmões na capacidade máxima.
Três. Pulei na água porque sabia, ficar fora dela mais meio minuto me faria chorar como criança.
E eu não podia chorar. Não ali. Não tão vulnerável, não a vista de tantos rostos conhecidos.

A água abraçou meu corpo, soltei o ar embaixo dela, vendo as bolhas subindo enquanto eu batia os pés e dava as braçadas que precisava para chegar ao outro lado.
Mas, o que eu encontraria do outro lado?

Quando minha mão bateu na parede da piscina, soube que não tinha outra escolha a não ser sair dali. O pulmão doía por eu ter insistido em não pegar mais nada de ar durante a travessia, os músculos da perna ardiam, queimando como fogo pelo tamanho esforço, e mesmo sabendo que eu precisava sair, que queria fugir, esperei, focada na dor, enquanto o treinador vinha.
Levantei os óculos e o encarei, vendo seu olhar tão morto quanto o meu quando ele anotou o meu tempo na ficha.
— Podia ser pior. — aquele era o jeito dele dizer que eu não tinha ido tão bem e, assim que ele saiu de perto, tomei novamente todo o ar que podia nos pulmões e afundei ali mesmo.

Abri os olhos embaixo d’água, forçando o corpo a ir para baixo, até que encostasse o bumbum no chão da piscina, abracei minhas pernas e olhei em volta, querendo poder não sair dali, querendo poder permanecer dentro d’água ou em qualquer outro canto, pra sempre. Tudo pra não voltar pra minha vida, pro meu mundo, pras minhas coisas todas…

Estar na rua era ruim. Muito ruim. Mas chegar em casa conseguia ser pior.
Desviei da tv da sala onde meus pais jantavam e assistiam sua novela favorita e subi as escadas, pronta para entrar no meu canto e não precisar ver ninguém até a manhã seguinte.
Trancar a porta havia se tornado um hábito, não tomar mais os remédios também era algo que fazia com frequência. Tudo se baseava em deitar na cama, colocar os fones de ouvido, e me cobrir com todas as cobertas disponíveis, até o sono vir, até eu não precisar lidar com o que estava ali.
E ela estava ali.
Eu sabia.
Nos cantos do quarto, atrás da minha cadeira enquanto eu mexia no computador, e na minha cama, embaixo das cobertas junto de mim, me abraçando, me chamando, me puxando pro mundo onde tudo era nada e nada doía, como doía.

Acordei cinco minutos antes do relógio tocar, era a nova tática, fingir perder a hora, e assim que o telefone tocou, desliguei o despertador e virei para o lado, sem sono, sem conseguir dormir, mas nenhum pouco confortável pra sair da cama.

Forcei, o sono veio, dormi.

— Ava! — minha mãe bateu na porta. — Ava! Acorde, você perdeu a hora de novo! — ela me chamou e levantei com raiva. Será que ela não sabia que eu queria ficar ali, quieta?
Ela havia chegado e tirado toda a paciência de mim.
Não era culpa da minha mãe e sim da onda azul que enchia meu peito toda vez que eu precisava me mover, falar, comer, andar.
— Perdi. — falei assim que abri a porta como se não fosse nada demais.
— Você está bem? — minha mãe perguntou.
— Estou. Até depois. — fechei a porta, limitando o espaço dela, demonstrando da forma que dava de que ela não era bem vinda.
Meu quarto era meu espaço, meu e dela. E não cabia mais ninguém

Eu não tinha fome. Ela me alimentava com tantas perguntas, frustrações e agonia que meu estômago se recusava a receber qualquer comida sem passar mal. Quando eu comia, vomitava. Quando eu comia, ela sussurrava o quão gorda eu ficaria, o quão lenta eu seria dentro d’água. E ela ria, dizendo como meu corpo seria comparado ao de um animal.
Ela imitava o riso dos outros, ela me fazia ver os pensamentos deles sobre mim e eram todos cruéis.
Era mais doloroso ouvir as risadas do que ficar sem comer, então, eu só me alimentava quando não tinha opção.

— Ava, está bem? — o treinador perguntou quando me viu tremer.
Balancei a cabeça enquanto olhava para frente.
Não conseguia mais olhar nos olhos de ninguém ali dentro sem lembrar o que eles podiam estar pensando sobre mim.
Antes que ele perguntasse mais alguma coisa que me fizesse desabar, eu andei até minha raia, e sabendo que o único jeito de ficar longe de todos era dentro d’água, eu pulei.

Dentro d’água ela não me alcançava, dentro d’água era eu e o silêncio.
Era por isso que eu ainda não tinha desistido de nadar.
Era minha única chance de ficar sozinha.
Até o dia em que eu a ouvi ali e descobri que ela não era só minha acompanhante, mas também, parte de mim.

Eu nunca mais pisei na piscina.
Ela dizia que eu não podia deixar meus pais desconfiarem que ela existia ali comigo e me obrigou a levantar alguns dias da semana para enfrentar a escola. Eu não gostava de ficar acordada. Sempre que eu dormia, ela não tinha controle sobre mim, mas agora, acordada, precisando fingir que ela não existia, tudo ficava mais difícil.

Me perguntei como não havia enxergado ela antes, escondida em cada dobrinha de insegurança, de tristeza, de frustração.
Como não a vi chegar e se instalar no meu peito?
Como não a vi chegar e controlar minha vida?

Tudo o que eu via era da cor azul.
O azul dominava o meu peito, fazendo respirar ser difícil. Dominava meus dedos, fazendo o tato ir embora, não me deixando agarrar em nada que pudesse me manter viva e quente.
O azul dominou minha alma, meu corpo, meu cérebro.
E azul era o que ela era, com todos os seus braços ao meu redor, dizendo o quanto não estar ali seria bom.

Pés na areia.
Aquilo eu podia enxergar como era, mas não gostava.
A praia estava vazia. O mar, bravo. Eu, despedaçada.
Ela sabia o que eu queria fazer.

Rocei os dedos uns nos outros, sentindo a textura dos grãos minúsculos na pele e dei o primeiro passo, me abraçando por conta do vento frio que soprava.
Dei mais um passo e ela me agarrou pela blusa.
Travei a mandíbula e continuei.
Mais um passo e outro, até que a água gelada tocou meus pés, molhou a barra da minha calça de tecido leve e a fez grudar nas minhas pernas.
Ela entendeu que eu não desistiria e me agarrou, desesperada.
Seu corpo pesado me abraçou, tentou me fazer ficar, tentou me fazer parar. Mas eu fui mais forte.
Mais um passo, mais outro.
Minha companheira de anos, minha dona, me sufocou.
Senti seus dedos em volta da minha garganta, mas corri.
Corri dela sem conseguir respirar, até a água passar do pescoço, até o mar me tragar algumas vezes e as ondas baterem contra o meu corpo. Nadei, bati os pés e os braços, para o mais distante possível da costa, e quando pensei que estivesse livre dela, quando achei que nossa separação seria eterna, encarei o céu debaixo d’água, vendo as últimas bolhas de ar flutuando até a superfície, me dei conta de até onde tinha ido.

Eu morreria, mas morreria minha.

E foi assim quando as pernas não tiveram força para brigar com a água fria, pesada e furiosa, quando os braços cansaram de içar meu corpo no meio daquela densidade toda, quando abri meus olhos e tudo o que via era azul, eu a vi de longe, não conseguindo me alcançar.
Pela primeira vez nós nos encaramos de igual para igual.
Pela primeira vez eu tinha coragem de vê-la, e teria rido se pudesse.
Ela era eu. Um eu que eu nunca vi, mas que me tornaria.
Ela era azul. Completamente azul.
E agora eu também era.
Sorri.
Fechei os olhos, para nunca mais abrir.
Para sempre azul.

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