AVISO
Este é um romance bully. Aqui você encontra o extremo do enemies to lovers, em que os personagens não têm uma relação saudável entre si e, como já se denomina o gênero, fazem bullying um com o outro. Ele pode causar desconforto, contendo, além do bullying, agressão física, psicológica e sexual. Abuso de drogas lícitas e ilícitas. Suicídio, depressão, pânico.
Esta é uma obra de ficção destinada a maiores de 18 anos. A autora não apoia e nem tolera esse tipo de comportamento.
Não leia se não se sente confortável com isso.
PLAYLIST
EPÍGRAFE
Fisicamente, habitamos um espaço, mas, sentimentalmente, somos habitados por uma memória. o que a memória ama fica eterno. O passado não reconhece seu lugar: está sempre presente.
josé saramago, adélia prado, mario quintana.
PRÓLOGO
Os olhos dela faiscaram.
Fogo e fumaça.
Uma única lágrima rolou marcando o caminho úmido na fuligem
em sua bochecha.
Foi então que eu soube: Scarlet me odiava.
Me odiaria para sempre.
E não havia nada que eu pudesse fazer a não ser odiá-la de volta.
CAPÍTULO 1 – SCARLET
Eu nunca mais havia chorado, mas naquela manhã, quando o despertador tocou, eu tive vontade de fazê-lo. Fechei os olhos, respirei fundo e prendi a respiração enquanto o cansaço se apossava das lágrimas que queriam descer, drenando cada uma delas.
Cinco segundos depois de soltar o ar preso nos pulmões, foi como se nunca tivesse tido aquele pensamento.
Encarei o teto com os traços pintados de preto e vermelho, me sentindo mais refém do que nunca daquela vida e brinquei com a língua no céu da boca antes de criar coragem para começar o dia.
Se eu tinha conseguido dormir três horas naquela noite, era muito, mas de um jeito ruim, meu corpo já parecia adaptado para dar o seu máximo mesmo com o mínimo de energia. Aquele ciclo durava dias até que, finalmente, eu cairia na cama e nada conseguiria me acordar. Eu preferia assim, pois, quando exausta, eu quase nunca sonhava. E se sonhava, não me lembrava. Mas nas raras vezes em que meu subconsciente falhava em me proteger, eu sabia que o veria. Era um tormento saber que na minha mente eu ficaria presa com ele, e há anos eu vinha fugindo disso, mesmo que vez ou outra fosse obrigada a voltar lá: no dia em que perdi tudo, no dia em que ele arrancou o resto de vida de mim.
Meu primeiro horário de aula era às nove e eu poderia facilmente enrolar um pouco mais nos lençóis, mas tinha combinado de tomar café com Isaac. Eu precisava ir para recompensá-lo, uma vez que ele não forçou quando ouviu minha milésima desculpa para evitar assistir a mais um dos seus jogos de futebol.
Joguei as pernas para fora da cama, desistindo da ideia de ficar e ter pena de mim mesma, vasculhei com a mão sobre a mesa de cabeceira, conferindo que meu maço de cigarros já estava pela metade e, sacudindo para que um pulasse do pacote, o prendi entre os lábios. Acendi e traguei em um movimento natural, prendendo a fumaça nos pulmões, conforme ajeitava o cabelo no alto da cabeça e me levantava para ir ao banheiro.
Quando pronta, de banho tomado, dentes escovados e vestida, conferi a escolha do dia no espelho de corpo inteiro preso à porta do closet.
Minhas botas pesadas por cima da calça jeans preta com rasgo no joelho me faziam parecer uma rebelde. O complemento não ajudava, já que por baixo da jaqueta de couro dos Fierce Lions, a camisa xadrez vermelha e a regata branca não ficavam tão à vista, mas era o bastante para enfrentar aquele começo de outubro mais gelado do que o esperado.
Passando a mochila pelos braços, ensaiei o melhor sorriso que podia em frente à porta, ajeitei o piercing de argola no nariz, girei a maçaneta e deixei o único lugar seguro dentro daqueles muros para encontrar meu namorado.
Eu era uma mentirosa de merda, ainda bem que ele não percebia isso.
A Prince University era antiga, renomada e cara, muito cara. Eu não era pertencente, mas fazia o meu melhor para honrar a chance de estar ali. Suas escadas largas, seus corredores escuros, seus vitrais góticos, torres altas e salas esquisitas, de algum jeito sombrio e torto, se transformaram no meu lar.
Minha cafeteria favorita, a única que servia um café colombiano decente, ficava no quarto andar. E com um cigarro na boca, fones nos ouvidos, na melhor tentativa de passar completamente invisível enquanto descia as escadas até lá, quase esbocei uma reação que não deveria quando, finalmente, cheguei ao meu destino e abri a porta.
Meu ego havia sido extinto há alguns anos. Ou talvez nunca tenha existido, porque no momento em que notaram minha presença, o jeito como Isaac deslizou para fora do banco das líderes de torcida poderia ter me feito chorar. Fingi estar distraída, fingi não o ver, e arranjei o que fazer para que ele tivesse tempo de vir até mim. Arranquei os fones, procurei por tempo demais o lugar onde o lixo estava para poder jogar a bituca do cigarro fora e, finalmente, senti seu toque no meu ombro.
Eu não era baixa, no alto dos meus 1,76, quando me virei para encará-lo, o sorriso de Isaac estava bem na altura dos meus olhos. Ele parecia perfeito, como sempre, e ninguém diria que estava fazendo algo de errado, minutos atrás, nem mesmo eu.
— Por um minuto… — Seus dedos vieram para o meu rosto. Apesar de manter meu cabelo preso em um rabo de cavalo alto, as mechas descoloridas da franja estavam soltas e ele afastou uma delas para trás da minha orelha. A plateia suspirou por ele, não por nós. — Achei que precisaria levar seu café no quarto.
Inclinando-se para mim, o garoto de cabelos claros e olhos verdes me beijou.
— Eu… — me afastei e lambi os lábios, tentando pensar com clareza, sabendo que tinha gente demais prestando atenção na nossa interação —… não perco o café.
— É, eu sei. — Pegando na minha mão, o loiro atlético, de sorriso divertido e olhos que brilhavam como mil estrelas, me guiou para uma mesa distante e vazia.
Foi inevitável encarar o restante da cafeteria ao me sentar, e eu só olhei para o meu parceiro quando ele soltou um riso baixo.
— Você ainda não se acostumou, não é? — Ele sabia que eu odiava aquela sensação de ser observada.
— Nunca vou — admiti.
— Eles são só curiosos. — Ao contrário de mim, Isaac amava ser o centro das atenções.
Acostumado com isso desde que nasceu, sendo quem era, aquilo era natural para ele.
— Mas já faz quase dois anos… — Suspirei e me ajeitei quando a garçonete veio tirar os pedidos. — Achei que uma hora ia melhorar.
Era uma confissão inocente, idiota, mas real.
Na frente dele, todo mundo me tratava bem, mas quando Isaac virava as costas e não tinha nenhuma testemunha, eu podia ouvir os comentários.
“Aproveitadora.”
“Tenho certeza que morando naquela casa, ela deu para o pai e para o filho.”
“O que ela tem demais? Vagabunda.”
E dali era ladeira abaixo.
Quando começou, jurei que aguentaria, que seria passageiro até que algo maior acontecesse e nós saíssemos dos holofotes, mas Isaac Prince nunca saía dos holofotes.
Ele os amava e os atraía feito a lua e os vagalumes. Consequentemente, eu acabava estando lá, e nós nunca nos tornamos irrelevantes.
— Isso te faz repensar sobre nós? — A pergunta era sutil, mas feita com tanta constância que eu precisava me controlar muito para não gritar com Isaac.
— Não. Mas e você? — Ergui os olhos para os dele e sua expressão séria era a mesma que havia conquistado minha confiança.
— Jamais. Você sempre será minha. — De novo, sua mão buscou meu rosto e eu deixei que ele acariciasse minha bochecha.
— Então estamos resolvidos. — Sorri, tentando relaxar um pouco antes do café ser servido, me afastando do contato físico que às vezes era incômodo pra caramba. — E como foi o jogo ontem? Soube que os Fierce Lions acabaram com os Birds of Prey.
— Soube como? — Ele ficou levemente tenso e eu não entendi o motivo.
— Os fogos pela minha janela eram laranjas, além de que, os gritos pelos corredores do pessoal voltando não me deixavam cochilar.
— Ah, isso. — Isaac relaxou. — Acabamos com eles, é verdade. E com isso, vamos ter uma boa festa no campo em comemoração amanhã, o que acha? Meu pai disse que é ano de anunciar o Torneio das Espadas, então…
— Torneio das Espadas? — Quis rir do nome ridículo. — Vocês vão mesmo duelar?
— Não, baby. — Ele riu da minha expressão. — Hoje em dia o torneio é entre as fraternidades e com todos os esportes possíveis.
— Hm… em quantos você vai disputar?
— Futebol, basquete, nado, corrida e o que mais aparecer… Mas e você?
— Eu? — Juntei as sobrancelhas e franzi os lábios, negando com a cabeça. — Você sabe que tenho dois pés esquerdos.
— É, mas você mata qualquer um no videogame. É melhor do que eu. — Nosso café foi servido. O meu era um copo grande de viagem, o dele um prato completo e um belo suco de laranja. — Quero que você
participe da competição.
— Amor, eu… — Tentei fugir, mas Isaac me encarou do modo mais pidão e irresistível.
Meu namorado era lindo, meu único amigo naquela merda de lugar, e ele sabia muito bem como arrancar as coisas de mim, já que eu odiava desapontá-lo.
— Por mim, por favor. — Ele era profissional em fazer cara de cachorrinho que caiu da mudança. — Preciso exibir minha namorada superinteligente e rainha dos controles.
— Eu não sei… — Minha voz saiu baixa, um sopro, e tentei encarar a janela, vendo o gramado vazio naquela manhã.
— Por favor, Scarlet. — A mão dele veio para as minhas e eu suspirei.
— Prometa que vai pensar.
— Certo. — Voltei minha atenção para nossas mãos e perguntei, encarando-o: — Quando as inscrições abrem?
— Amanhã. — Conseguindo o que queria, o toque foi interrompido.
— Parece que hoje à noite tem alguma coisa acontecendo com os Vipers. — O desprezo no meio-sorriso que ele abriu quando mexeu nos ovos com o garfo me deu um frio na espinha. Era para eu ser uma Viper, mas escolhi os Lions porque não tinha
estômago para ver a desaprovação nos olhares de Isaac e do senhor Prince.
Não quando todos os Prince eram Lions e tinham orgulho disso.
— Alguma coisa, tipo? — A curiosidade atiçou dentro de mim.
— Não faço ideia, mas seria bom você me prometer não sair do seu quarto. Sabe que aqueles idiotas não têm limite, e não quero nenhum deles podre de bêbado ou sabe mais lá o que esses idiotas usam, pegando você fora do seu quarto depois do toque de recolher…
— Não vou sair. — Mordisquei o lábio depois do primeiro gole de café. — Eu tenho muito trabalho a fazer.
Mesmo que nenhum deles fossem meus.
A verdade era que, se alguém desconfiasse, eu estava na merda, mas havia um servidor onde eu era contratada de forma anônima para fazer trabalhos da graduação. O pagamento era feito na entrega, dentro do
horário do toque de recolher, e era com aquele dinheiro que eu planejava ter um futuro em outro país, do outro lado do oceano. A América me esperava. Eu seria uma enfermeira das boas.
— Sempre tão responsável… Você é um anjo, Scarlet. — Isaac sorriu
com os olhos e colocou uma das pernas entre as minhas. — Mas ainda quero saber quando terei minha namorada em uma noite dessas… — O suspiro era uma chamada de atenção.
Eu o amava, mesmo.
Não via a possibilidade da vida com outra pessoa que não ele. Isaac era meu parceiro.
Ele me protegia como podia e, de longe, era meu único amigo, mesmo que o tempo entre nós fosse escasso.
— Acho que esta semana… Pós-festa? — Era uma merda aquele clima de fugir do contato íntimo. Mesmo que nós já tivéssemos feito coisas, minha virgindade estava intacta. Nunca parecia a hora certa.
— Perfeito. — O rosto dele se iluminou.
— Certo. — Olhei para o relógio do visor do celular, notando que eu tinha quinze minutos para atravessar o prédio e suspirei, afastando a cadeira da mesa, puxando o maço de cigarros do bolso da jaqueta.
— Você não diminuiu, não é?
Como era atlético e todo geração saúde, Isaac odiava me ver fumando.
— Claro que diminui — menti, segurando o maço nas mãos. — Antes, eu fumava dois desse, hoje em dia um anda bastando. — Querendo evitar mais uma discussão, ainda mais em uma manhã tão proveitosa, me
levantei carregando o café na mão livre e me curvei sobre ele.
O cabelo loiro bem-penteado e modelado com o gel tinha um cheiro bom, e eu o aspirei ao máximo quando beijei sua testa. Desta vez, Isaac não foi tão rápido, ou discreto. Suas mãos me puxaram pela bunda contra si e eu quis rir, mas não tive tempo porque seu rosto se ergueu, sua língua forçou a entrada na minha boca e suavemente fez com que minha respiração
acelerasse. Eu não era imune ao charme dele, nem sobre sua habilidade.
Quando meu corpo todo esquentou a ponto de eu querer me livrar da jaqueta, soube que era hora de me afastar.
— Eu te amo — sussurrei entre o beijo.
— Eu também. — A correspondência me fez sorrir, e quando ele selou os lábios sobre os meus, precisei de muito esforço para soltar meus braços que estavam em volta do seu pescoço e caminhar para fora da cafeteria sem olhar para trás, sabendo que a plateia animada agora me xingava mentalmente.
Foda-se. Nós seríamos para sempre.
Isaac era o único que merecia o meu amor.
O som estrondoso do lado de fora quase meia-noite me fez colocar o travesseiro sobre o rosto e gritar. Eu queria muito dormir. Já havia acabado com meu maço de cigarros, tomado um dos comprimidos que o último médico com quem me consultei mandou, mas o sono não vinha de jeito nenhum. A única coisa que eu sentia era uma vontade incontrolável de fumar e uma fome que parecia ter grudado meu estômago nas costas. Mais um grito do lado de fora e eu desisti de ser uma boa menina.
Se fosse pega nos corredores, ganharia uma advertência, mas justificar a fome junto da minha média global não mancharia em nada meu histórico.
Para minha desculpa ser ainda mais crível, nem tirei a calça de moletom cinza. Enfiei os pés com meia nos chinelos, coloquei a jaqueta sobre os ombros, soltei o cabelo, e com o dinheiro no bolso, saí.
O único lugar para comer àquela hora era o refeitório. Eu já o tinha enfrentado mais cedo, mas com tanto trabalho para fazer, mal comi e agora pagava por isso. Desci todos os lances de escada brincando com o zíper da minha jaqueta, morrendo de medo de ser pega e, finalmente, cheguei ao térreo.
A porta de entrada do prédio, com mais de três metros de altura, estava aberta.
Estranhando, me aproximei e encarei o gramado pouco iluminado sendo castigado pela chuva. A vontade de ir lá para fora me mordeu os calcanhares, mas parei antes de descer o primeiro degrau quando ouvi o som de uma trombeta.
Era de dentro que vinha aquele barulho todo?
— Não pode ser… — soprei, indignada.
Aquele som era ouvido apenas no primeiro dia de aula, quando o encerramento das divisões das fraternidades acontecia. Era algo que só ocorria em setembro, no começo do ano letivo, não fazia sentido estar tocando quase um mês depois.
A trombeta tocou de novo e vinha das portas do grande salão fechadas às minhas costas.
Eu tinha que entrar lá de qualquer jeito, precisava comer, mas algo me dizia para não fazer.
“Suba as escadas, volte para sua cama, beba água da torneira para tapear a fome”, o instinto soprou nos meus ouvidos, mas ignorei. A curiosidade era grande demais para voltar pelo caminho que havia feito.
Eu não tinha andado tanto por nada.
Atravessei a curta distância de um portal ao outro, pousei a mão na porta, e então a cabeça, tentando ouvir algo de lá de dentro. Era uma bagunça sem fim, mas por quê? Festas ali eram proibidas quando não oficiais.
E se eram oficiais, por que não era aberta para todo mundo da faculdade?
Empurrei um pouquinho a porta gigantesca para espiar lá dentro, mas no segundo seguinte em que a forcei, alguém do lado de dentro a puxou.
A madeira rangeu, a porta se escancarou e fui atingida em cheio por toda a informação que meus olhos enxergaram. Eu deveria ter corrido quando vi o primeiro desenho de serpente, mas minha única reação foi congelar no lugar. Havia fogo lá dentro e não era pouco.
Eu quase me mijei tentando entender o que acontecia. Havia alunos por todo lado, vestidos de verde, prata e preto. Capuzes na cabeça, a serpente envolta no crânio por todo lado.
Um aro de fogo no meio de tudo, e o meu pior pesadelo acontecendo. Era ele, sozinho, parado no meio da sala. Os olhos pretos como carvão me aprisionaram no lugar. Minha boca se encheu do gosto amargo do ódio. Meu coração martelou nos ouvidos e minhas veias arderam no segundo em que ele me reconheceu. Eu o vi atravessar o fogo, vitorioso, sem sorrir. Pior ainda, enquanto sua nova turma vibrava, ele continuou a andar na minha direção.
Ele não estava saindo deliberadamente, estava vindo para mim. No último segundo, piscando, sabendo que aquilo era real, minha reação foi uma só: Eu corri.
Corri como se minha vida dependesse da maior distância que conseguisse manter dele, e só parei com os pulmões explodindo, dentro do meu quarto, com a porta muito bem trancada.
Curvei-me sobre os joelhos, escorregando para o chão, sem saber se chorava ou se gritava e, conforme tentava me acalmar e me convencer de que aquilo era uma alucinação causada pela fome e o medicamento, meu celular vibrou no meu bolso.
Tapei a boca, segurando o grito, mas não tive tempo de fazer mais nada antes de ver outra mensagem pular vinda do mesmo número.
Eu não tinha dúvidas de que ele conseguiria.
Na verdade, ele já tinha feito
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